quarta-feira, 10 de novembro de 2010

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

De desencontros

Tinha acabado de subir as paredes escorregadias da toca. Eu havia chegado ao topo, afinal. Via o pouco de luz que meus olhos, desacostumados com a claridade, conseguiam absorver. Estava ainda fraca quando aquela noite de julho me jogou de volta para a toca. Mas não acho que tenha sido só a fraqueza da relação interior. Não, não foi só a fraqueza. Mal sabe ela que motivos não me faltam. Tenho aos montes. Talvez o principal deles seja aquele olhar urgente que ela me deu uma vez. Aconteceu uma única vez, mas bastou. Ou talvez seja a risada alta que ela dá quando ri de verdade. Ou o jeito delicioso com que usa as palavras. Talvez seja o olho direito, sempre mais fechado, ou talvez o jeito de falar, oscilando entre grito e sussurro. O jeito que escreve, que sorri, que canta. O jeito que erra a letra da música e coloca a culpa no cantor. O jeito que se importa. Como me surpreende quando comenta algo que eu achei que ela não tinha prestado a menor atenção. Ou o jeito que acha que eu não presto atenção, quando o que mais faço nesses últimos meses é prestar atenção no que ela diz. Talvez seja o jeito sensível que não aparece de cara, mas que está lá, é só olhar bem. O cheiro. Aquele jeito de quem sabe de tudo. A implicância. Talvez seja aquela roupa que ela usa, ou o jeito sexy que eu costumava achar. Como disse, motivos não me faltam. Ela, pra mim, é aliviante. Como o pôr-do-sol. Como o dia que se abre depois da chuva. Dizem por aí que a gente fica bobo quando se apaixona. Vê o outro mais bonito do que realmente é. Mas eu não acredito nisso. Acho que, na verdade, quando nos apaixonamos vemos o outro. Vemos de verdade. Ver. Uma coisa meio "O segredo dos seus olhos". Não importa como a pessoa aparenta ser, mas como ela é. Como ela é quando prestamos atenção e a vemos de verdade.
Voltando a mim, pois é, contrariando todas as expectativas, parece que me apaixonei. Juro que tentei negar. Neguei pra mim e pros outros. Mas acabei chegando a conclusão que só posso ter me apaixonado. Ou pelo menos entrado nesse processo - e ele ficou assim, interminado. Sim, sou de processos. Entro em processos conscientes pra gostar de certas coisas. Não foi o caso, lógico. O processo de me apaixonar de novo foi totalmente inconsciente. E inesperado. Um dia eu estava querendo fugir e inventar uma desculpa pra ela não aparecer na festa - como, aliás, sempre faço. No outro já estava inventando uma desculpa pra vê-la de novo. E de novo. E de novo. E não sei em que parte dessa história toda me perdi. Me perdi. Entrei na toca do coelho. Entrei não, caí. Provavelmente o que aconteceu é que eu estava só espiando na borda. Sabe. Olhando lá pra baixo e lembrando do tamanho da queda. Aí bateu um vento. Só pode ter sido isso. E eu caí. Fiquei grande e pequena, como na história. Mas, como caí sozinha, não caí por inteiro. Me segurei em algum galho no caminho e parei. Parei no processo de me apaixonar. Graças aos Deuses. Por um momento achei que ela tivesse vindo comigo. Me assustei com a queda, claro. Mas com ela comigo, talvez me demorasse um pouco mais pra voltar à superfície. Talvez nem voltasse. Ficaria lá, presa no galho, acompanhada por ela, escorregando aos pouquinhos mais pra baixo. Eu disse acompanhada por ela? Não, não. Me enganei. Me enganei absurdamente. Fui sozinha. Ela permaneceu lá, bem longe da toca. Bem protegida, com os dois pés no chão, numa distância segura: bem longe de mim. Provavelmente nem se deu conta do que aconteceu. Nem reparou quando eu sumi pela abertura. Devia estar olhando pro outro lado. Não a conhecia, afinal. Talvez pela fraqueza da queda anterior, não enxerguei direito o que me foi mostrado. Ou o que não me foi. Porque de fato, ela não tem culpa. Não deu um real sinal sequer de que embarcava comigo. Não se envolveu nem por um segundo. Quem idealizou fui eu. Mas o que importa é que foi naquele momento, quando me dei conta de que estava perdida no processo, que parei pra lembrar do começo. E percebi que a minha nítida sensação dela na beira da toca, caindo comigo, estava embaçada. Me enganei. Logo eu, que me orgulhava de sempre saber dessas coisas. Que me orgulhava de não perder meu tempo com quem não iria até a beira comigo. E de sempre, sempre perceber quando acontecia. Pois é, logo eu. Mas o fato é que fiquei presa, nessa memória do que não aconteceu, por um bom tempo. E nesse tempo me perdi ainda mais. E nesse tempo a perdi, se é que ainda havia algo pra perder. Na certeza que ela tinha entrado comigo, não a enxerguei do outro lado do jardim. Fiquei cega, logo eu, que me orgulho de ser diagnosticada com 100% de visão. Mas preciso voltar, não posso me perder no assunto que me fez escrever essas linhas. 
Ela. Ela está lá, provavelmente segura, provavelmente apaixonada, provavelmente linda como eu a vejo. Mas lá. Achando tudo isso uma grande bobagem. Com outra pessoa, provavelmente pensando em chegar bem pertinho da beira da toca. E quem sabe cair, dessa vez. E talvez ela nunca tenha percebido que me deixa aqui, ainda meio perdida, ainda tentando escalar as tais paredes escorregadias.Que dessa vez são mais curtas, graças ao galho que me fez parar no meio do processo. Mas, quando se sai da toca pela segunda vez seguida, não se tem mais forças pra cair de novo. Claro que é um risco. Pode passar um vento, de repente, como aconteceu dessa vez. Mas é só ficar bem longe da entrada. Do outro lado do jardim. Esperando que as mãos melhorem, o coração descanse, as unhas voltem a crescer. Pode não parecer, mas isso é uma declaração tardia. Não que ela se importe, mas espero que aproveite, porque nunca faço coisas assim. E ela talvez nem acredite nisso, como não acredita em muita coisa. Mas, como disse, as paredes são escorregadias demais. E escrever me ajuda a subir. Já quase sinto a luz novamente, queimando meus olhos. Amém.


(Alice Carvalho)